sexta-feira, julho 29, 2011

O Departamento

Era uma moderna prefeitura do interior do país. E aquele era um dos seus departamentos mais importantes: o importantíssimo Departamento Municipal de Impostos e Taxas. Sinal da modernidade do Departamento era que um moderníssimo computador e uma impressora ainda mais moderna estavam lá, em suas respectivas caixas. As caixas – novas e lacradas – davam ao Departamento um ar de perfeita modernidade. E, embora, ainda estivessem nas caixas, só a presença daqueles avançadíssimos instrumentos naquela repartição pública mostravam que as coisas jamais seriam as mesmas e que o prefeito cumpria a promessa feita há três anos de modernizar o Departamento (evidente que os cidadãos torciam muito para que aquelas caixas não ficassem lacradas por mais três anos).

Era naquele Departamento que os cidadãos cumpriam com o dever cívico de pagar os tributos municipais e contribuir com o desenvolvimento da cidade. Aquele cidadão, o senhor Hamilton Bandeira, recém-chegado à cidade, ia fazer exatamente isso: legalizar a pequena propriedade rural, há pouco adquirida, e pagar o imposto devido. Foi muito bem recebido pelo senhor Hidelfonso de Alencar, dedicado funcionário do Departamento, que solicitou ao senhor Hamilton Bandeira que apresentasse o documento, a escritura do imóvel. Deveria deixá-la e, no dia seguinte, vir buscar o documento novo e pagar o imposto devido. Hidelfonso guardou a escritura na primeira gaveta que encontrou. O senhor Hamilton Bandeira agradeceu e prometeu voltar no dia seguinte.

Quando o Secretário Municipal de Finanças chegou, o respeitável senhor Homero Feitosa, o eficiente Hidelfonso de Alencar comunicou-lhe sobre a visita do senhor Hamilton Bandeira e que este voltaria no dia seguinte para legalizar seu imóvel e cumprir com suas obrigações tributárias. Por estar naquele dia com uma forte dor de cabeça, o secretário municipal adiou para a manhã seguinte a emissão do documento do senhor Hamilton Bandeira.

Só que, à noite, o vigia do Departamento – o senhor José do Nascimento da Silva, popularmente conhecido como João Cambão, trabalhador incansável, apesar dos seus 65 anos – resolveu fumar. Até aí nenhum problema, exceto a atitude politicamente incorreta de João, o vício do cigarro (vamos dar um desconto para ele: o coitado levara uma vida difícil na roça, era órfão de mãe e o pai o tratara a vida toda como um animal).

Pois foi que, para fazer o seu cigarrinho de pacaia, João Cambão precisava de papel. Abriu a primeira gaveta que encontrou, aquela dita cuja gaveta, retirou de lá a escritura do senhor Hamilton Bandeira e fez com ela um gostoso cigarro.

Depois de mais alguns cigarros e aquela conversa de calçada típica do interior do país, João Cambão foi dormir. Dormia no próprio Departamento, é claro. Assim, puxou o colchão velho e esburacado que guardava por trás do armário do Departamento, colocou-o sobre a mesa e ajeitou-se para o sono. Cumpria assídua e pontualmente sua jornada de trabalho: só despertava às 6 da manhã, quando se levantava e ia para casa.

No dia seguinte, o secretário municipal procurou a escritura para providenciar a emissão do imposto do senhor Hamilton Bandeira, mas não a encontrou (pudera: tinha sido fumada por João Cambão...). O senhor Homero não entendia, pois o sempre eficiente Hidelfonso de Alencar, seu subordinado, lhe dissera que a escritura estava na gaveta... Para completar, nada de Hidelfonso chegar.

Quem chegou foi o senhor Hamilton. O secretário municipal pediu que esperasse um pouco, enquanto aguardava a chegada de Hidelfonso para lhe repassar a escritura.

Enquanto Hidelfonso não chegava, Hamilton e Homero iniciaram um importante diálogo sobre a modernização do serviço público, aspecto visivelmente presente naquele departamento, nas caixas novas e ainda lacradas, contendo um computador de última geração e uma impressora. Possuía scanner também? – perguntou o senhor Hamilton.

- Com certeza, respondeu o secretário municipal (embora não soubesse o que é um scanner, mas por se tratar de uma palavra estrangeira, devia ser um objeto imprescindível).

Para o senhor Homero, a conversa servia para distrair, passar o tempo, enquanto esperava uma saída para o impasse de não saber onde estava o documento do senhor Hamilton Bandeira. Mas eis que chega o eficiente funcionário público Hidelfonso de Alencar (atrasado? isso não era normal).

- Pronto, o funcionário chegou.

O secretário municipal sentiu-se aliviado, Hidelfonso com certeza saberia do paradeiro da escritura do senhor Hamilton.

- Eu e o senhor Hamilton estávamos esperando por você, Hidelfonso.

- O senhor não providenciou o documento dele ainda não? – perguntou Hidelfonso ao seu superior.

- Não, estava esperando você para me dizer onde está a escritura.

- A escritura do homem aqui?

- Sim.

- Tá na gaveta.

- Não, não está Hidelfonso. Por acaso, você não teria guardado-a em outro lugar?

- Não, eu guardei nessa gaveta aí que o senhor abriu, sim, nessa aí.

- Não está.

E, Hidelfonso, com a espontaneidade que lhe era natural:

- Então, se não tá aí é porque João Cambão fumou!

E, o secretário, que ainda tentava manter no Departamento a falsa aparência de modernidade, fingindo desconhecer os hábitos de João Cambão:

- Não, Hidelfonso, você deve estar enganado. João Cambão não faria isso!

- Ele faz!

E, puxando o colchão velho, atrás do armário:

- Olha o colchão dele aqui; é aqui que ele dorme.

Depois disso, diante do silêncio estupefato do senhor Hamilton Bandeira, não se falou mais na modernidade do Departamento. Na verdade, não se falou em mais nada.