quarta-feira, abril 05, 2006

A queda de Palocci, estabilidade econômica, ordem e progresso

Gilcênio Vieira Souza

O ministro Antonio Palocci caiu.
O caseiro Francenildo dos Santos Costa afirmou ter testemunhado várias vezes a ida de Palocci a uma mansão, em Brasília, onde se encontrava com prostitutas e prostitutos, digo, parceiros, da “república de Ribeirão Preto”, para, supõe-se, articular lobbies e realizar orgias. Pela “ousadia” de ter denunciado o ex-ministro da Fazenda, o caseiro foi vítima de “um dos mais graves atentados aos direitos políticos de um cidadão jamais perpetrados desde a redemocratização” (Alberto Dines, “A devassa da devassa – vazamentos no banco dos réus”. In: http//observartorio.ultimosegundo.ig.com.br): Francenildo teve a sua conta bancária violada e divulgada à imprensa, num conluio no qual o próprio presidente da Caixa Econômica Federal se envolveu.
Se não tivesse feito uso do aparelho de Estado para quebrar o sigilo bancário do caseiro, a figura do ex-ministro continuaria imaculada, apesar de suas promíscuas relações com a iniciativa privada – datadas de quando ainda era prefeito de Ribeirão Preto – terem sido expostas no congresso e na imprensa. Fora do cargo, as denúncias contra Palocci agora ganham corpo em acusações de falsidade ideológica, peculato e corrupção.
A mística em torno do ex-super-ministro (El País, 29/06) atende pelo nome de “estabilidade econômica” e une gente como Lula, José Serra, Arnaldo Jabor, sindicalistas ligados à direção majoritária da CUT e do PT, que definem o mar de lama em que se meteu o governo Lula como fruto de um complô da direita, e até mesmo a anti-lulista revista Veja, para quem Palocci é “o mais brilhante ministro do governo Lula e um dos mais sensatos condutores da economia brasileira em décadas” (Edição 1950, 5/4/2006). .
Em nome da “estabilidade” Palocci foi preservado no cargo de ministro, até ser vítima de sua própria armadilha. “Estabilidade econômica” virou o abracadabra, tanto dos tecnocratas que querem vender uma boa imagem do país para os investidores estrangeiros, como do cidadão comum, que repete, autômato, mais que um clichê: a falsificação simbólica da realidade, recriada semanticamente, aspirando um consenso ideológico que impeça o questionamento das diretrizes do governo Lula, plenamente favoráveis ao grande capital financeiro. Afinal, quem, em sã consciência, é a favor da “instabilidade”?
Manipulação da linguagem e manipulação da realidade são aspectos inseparáveis e complementares da fabricação de consensos sociais, imprescindíveis à dominação política. Não é por outro motivo que 35% dos senadores e 10% dos deputados “controlam diretamente emissoras de rádio e tv” no Brasil (www.congressoemfoco.com.br), apesar de a lei proibir.
Há fartas indicações de que, muitas vezes, poder político e propriedade de veículos de comunicação caminham juntos. No Brasil, o controle dos meios de radiodifusão é uma das marcas de várias oligarquias locais ou regionais, algumas das quais com forte influência nacional. A família do ex-presidente Fernando Collor de Melo controla o principal grupo de mídia alagoano. As famílias Sarney e Magalhães imperam, respectivamente, no Maranhão e na Bahia (www.congressoemfoco.com.br).
O lema dos positivistas republicanos – “ordem e progresso” – corresponde, em certa medida, nos dias atuais, à propaganda da suposta “estabilidade econômica” obtida durante o governo FHC e que teria em Palocci “um dos mais sensatos condutores”. A criação da bandeira republicana é um dos exemplos mais representativos da manipulação simbólica com vistas à re-significação do mundo social. O lema positivista pretendia oficializar uma realidade perfeita, “estável”, a anos-luz da realidade brasileira, marcada pela miséria da população e a opressão política do poder oligárquico federal e das diversas oligarquias regionais. O problema é que não foi possível inserir o lema “ordem e progresso” no espírito das massas com a mesma facilidade com que foi inserido no céu da bandeira brasileira...
Artur Azevedo escreveu um conto, “O velho Lima”, que expressa o assombramento de um personagem para quem a manipulação dos significantes não havia se transformado em novos significados. O velho Lima, “empregado antigo numa das nossas repartições públicas”, adoece no dia 14 de novembro, ou seja, na véspera do golpe que fez da monarquia uma república no Brasil. Não tinha o hábito de ler jornais e, assim, ignorava por completo a mudança de regime político. Restabelecido nove dias depois, de volta ao trabalho estranha, no trem, que um comendador o tenha tratado por “cidadão”, que se refira ao imperador como “aquele tipo” e que o subdelegado tenha a ousadia de expressar o desejo de que Dom Pedro II “vá para a casa do diabo”. “O velho Lima estava atônito”.
Ao chegar à secretaria em que trabalhava, Lima observou que um “vândalo estava muito ocupado a arrancar coroas imperiais que enfeitavam o gradil do parque da aclamação”. Na secretaria, ”um servente preto e mal trajado não o cumprimentou com a costumeira humildade; limitou-se a dizer-lhe: - Cidadão!”. Completando os estranhos acontecimentos daquela manhã, Lima viu que “tinham tirado da parede uma litografia representando d. Pedro de Alcântara”. Curioso, perguntou a um contínuo sobre a imagem de “sua majestade”:
“- Ora, cidadão, que fazia ali a figura do Pedro Banana?
- Pedro Banana! – repetiu raivoso o velho Lima.
E, sentando, pensou com tristeza:
‘Não dou três anos para que isto seja uma República!’”.
Além de ser devido ao velho Lima não ler jornais, o estranhamento do personagem resulta também do fato de que os signos lingüísticos republicanos não haviam amadurecido junto à consciência popular de transformação do regime, afinal, a república no Brasil é fruto da articulação golpista de ex-monarquistas.
O governo Lula re-enfatizou a publicidade da “estabilidade econômica” do governo FHC. Para inglês ver: de que estabilidade estamos falando, quando sabemos que menos de 1% dos proprietários rurais no Brasil possuem 46% das terras e as 300 maiores propriedades rurais possuem uma área igual a dos estados de São Paulo e Paraná, enquanto, por outro lado, existem 4,6 milhões de famílias sem terra? A estabilidade dos ganhos ascendentes das transnacionais, que hoje abocanham 25% do PIB brasileiro, quando dez anos atrás era de 13,5%? A passiva “estabilidade” de 50 milhões de famintos? “Estabilidade econômica” não é o salmo que indica o céu para os cidadãos em geral; é uma logomarca que tenta esconder a exploração econômica dos que ganham salários miseráveis ou e ainda são levados a acreditar que “este é um país que vai pra frente”...
Enquanto isso, se complica cada vez mais a situação do maestro da “estabilidade” no caso da quebra do sigilo do caseiro, com a revelação dos métodos ditatoriais usados por Palocci para burlar o regime democrático do qual se dizia defensor.
117 anos depois, o velho Lima se sentiria tranqüilo numa república onde os governantes ainda usam métodos imperiais e os cidadãos – companheiros e companheiras – não conseguem desfrutar dos benefícios da ordem e do progresso do sistema capitalista.