terça-feira, junho 10, 2008

thebodywantsthebody


um poema datado de 24 de abril de 2000. Clique nele para ver melhor.

domingo, junho 01, 2008

A professora

Gilcênio Vieira Souza

Sob as palmeiras, ela ensinava.

Ensinava aos seus irmãos de roça o pouco que sabia. Pouco também era o tempo que aquele grupo de mulheres e crianças dispunha: muito coco pra quebrar.

Nazaré mostrava as letras: como elas se juntavam. De vez em quando premiava seus alunos com sorrisos e elogios, quando estes a premiavam com uma palavra “assuletrada” direitinho...

Comadres e afilhadas de Nazaré... Mulheres do outro lado do rio também vinham. Elas se juntavam, cada uma dava um pouquinho e o de-comer era preparado lá mesmo. Judite dizia que era a hora do recreio. Sorriam. Nazaré tinha uma afeição especial por Judite: tinham nascido e crescido no mesmo Buraco Fundo antes de irem parar em Beijuzeiro. Creonice, filha de Judite, era como uma filha para Nazaré; tinha jogado nela água de batismo.

Com o tempo, muitas alunas desandaram, como dizia Nazaré. É que muitas estavam indo para a periferia da cidade, “procurá coisa mió que quebrá coco”. Judite mesmo estava pensando nisso. Antenor, o marido, de vez em quando arranjava serviço na chácara do Dr. Henrique. Já estavam de olho numa casa, de ponta de rua mesmo. E tinha Creonice, que não queria mais saber de quebrar coco, vivia andando pros lados da cidade, tava ficando falada. Judite marejava os olhos lembrando o dia em que Antenor chamara a filha de sem-vergonha e a botara para fora de casa. A menina só tinha 13 anos... Judite se consolava com Nazaré, que dizia que Deus ia dar um jeito.

Nazaré entristecia com as ausências debaixo dos babaçus. Seu João, o marido, dizia Desiste Nazaré, esse povo num quer nada. Mas Nazaré não desistia e se encantava com coisas simples, como ouvir alguma ex-aluna dizer que aprendera com ela a fazer o nome. Então Nazaré chorava, mas era de alegria.

De tristeza ela chorou quando Creonice foi rareando nas aulas até não ir mais. Não andava mais na casa dos pais!

Nazaré decidiu, um dia, procurar Creonice nos arrabaldes de uma noite. Ajeitou pra dormir na casa de Maria Boleira, comadre sua que mudara pra cidade faz tempo! E estava bem, o marido era fichado em firma. Tinha televisão das maior, até! Quando Nazaré disse que ia pros lados dos bregas, atrás de Creonice, Maria Boleira disse que ela tava maluca, Aquilo lá é lugar pra senhora ir, comadre? Deixessa menina pra lá, Deus cuida...

Mas Nazaré foi. Meu Deus, quanta inocente nessa vida! As meninas a olhavam com receio. Negavam-se a dar informações sobre Creonice, fingindo não conhecê-la, até que uma: a senhora é mãe dela? Sou como fosse. Ali, com aquele caminhoneiro. Nazaré se aproximou com valentia nos olhos. Creonice a viu e se desembaraçou rápida dos braços do caminhoneiro encostado no carro e camisa nos ombros.

Os olhos de Nazaré disseram amargas palavras, depois doces. Os olhos de Creonice baixaram, depois se fecharam por segundos. Saíram juntas. Nazaré falava breve, e baixo. Creonice tinha que deixar aquela vida, estudar, casar, ser mulher de respeito. O silêncio de Creonice gritava vergonhas, ódios, arrependimentos, incompreensões. Tudo isso Nazaré entendia.

Dormiram na casa de Maria Boleira. No outro dia, Judite chorava abraçada com a filha. Nazaré se embelezava, sorrindo calada.

Mas Creonice não demorou em casa. O pai bateu nela quando ela esqueceu de botar água pros animais, dois burros de carroça. De noite, ela fugiu. Judite chorou mais uma vez. Nazaré caminhou. Seguiu o mesmo itinerário de antes, mas disseram-lhe que Creonice havia se mandado com um caminhoneiro. Nazaré se culpou: se eu tivesse vindo logo, não tivesse deixado passar esses três dias...

Seis meses depois, seu João foi chamar Nazaré na hora da aula. Que foi, João? Deixas meninaí, vamo lá em casa; vem logo. Em casa, Nazaré encontrou Creonice – só os cambitos, magrinha magrinha. Nazaré conteve o choro. Madrinha, eu posso ficar aqui? Pode sim, minha filha! Nazaré ia cuidar da bichinha. Creonice tirou das costas uma mochila pequena e encardida e, do meio de roupas com cheiro de usadas e guardadas, tirou um caderno velho e amassado. Ó, madrinha! Diante do caderno e das lembranças das aulas que ele guardava, Nazaré desta vez chorou um choro envelhecidamente novo...

Santa Inês, 07 de abril de 1999.

Para Ádemas Galvão.