quinta-feira, dezembro 08, 2011

um poema de 1993, com pretensões à letra de música (com alguns retoques nas duas primeiras estrofes, pode ser gravado pelo Zeca Baleiro)


que tem as moscas
de bodega como amigas
sabe que viver é uma
arte

ele que não vê poesia
nos suburbanos domingos
ou nas pírações do filho
hipotético poeta
espermadas no muro do bairro

com sua imensa prole
é um solitário
ontem chamado nordestino otário
hoje um mestre da sobrevivência
já não lembra o que
disse seu pai
1/2 século atrás
filho
viver é uma ciência

quinta-feira, novembro 24, 2011

Somos todos africanos


Como parte da semana da consciência negra, escrevi o reggae Somos Todos Africanos. Abaixo, a letra:

Somos todos africanos
Foi lá que tudo começou
Esqueça se seu pai é louro
Se era branco seu avô
Somos todos africanos
Somos todos africanos

Somos todos africanos
Por isso abaixo a arrogância
É na África que está
A nossa origem e a nossa infância
Somos todos africanos
Somos todos africanos

Chega de desprezo
Por outros seres humanos
Não importa a pele, o pelo
Pois somos todos africanos
Somos todos africanos
Somos todos africanos

Ninguém é melhor
Ninguém é superior
Somos feitos da mesma matéria
E todos sonhamos com o amor
Somos todos africanos
Somos todos africanos

Somos todos africanos
E passageiros do mesmo planeta
Uma gota no oceano
Portanto, não seja egoísta e careta
Somos todos africanos
Somos todos africanos

Somos todos africanos
Somos todos africanos

sexta-feira, julho 29, 2011

O Departamento

Era uma moderna prefeitura do interior do país. E aquele era um dos seus departamentos mais importantes: o importantíssimo Departamento Municipal de Impostos e Taxas. Sinal da modernidade do Departamento era que um moderníssimo computador e uma impressora ainda mais moderna estavam lá, em suas respectivas caixas. As caixas – novas e lacradas – davam ao Departamento um ar de perfeita modernidade. E, embora, ainda estivessem nas caixas, só a presença daqueles avançadíssimos instrumentos naquela repartição pública mostravam que as coisas jamais seriam as mesmas e que o prefeito cumpria a promessa feita há três anos de modernizar o Departamento (evidente que os cidadãos torciam muito para que aquelas caixas não ficassem lacradas por mais três anos).

Era naquele Departamento que os cidadãos cumpriam com o dever cívico de pagar os tributos municipais e contribuir com o desenvolvimento da cidade. Aquele cidadão, o senhor Hamilton Bandeira, recém-chegado à cidade, ia fazer exatamente isso: legalizar a pequena propriedade rural, há pouco adquirida, e pagar o imposto devido. Foi muito bem recebido pelo senhor Hidelfonso de Alencar, dedicado funcionário do Departamento, que solicitou ao senhor Hamilton Bandeira que apresentasse o documento, a escritura do imóvel. Deveria deixá-la e, no dia seguinte, vir buscar o documento novo e pagar o imposto devido. Hidelfonso guardou a escritura na primeira gaveta que encontrou. O senhor Hamilton Bandeira agradeceu e prometeu voltar no dia seguinte.

Quando o Secretário Municipal de Finanças chegou, o respeitável senhor Homero Feitosa, o eficiente Hidelfonso de Alencar comunicou-lhe sobre a visita do senhor Hamilton Bandeira e que este voltaria no dia seguinte para legalizar seu imóvel e cumprir com suas obrigações tributárias. Por estar naquele dia com uma forte dor de cabeça, o secretário municipal adiou para a manhã seguinte a emissão do documento do senhor Hamilton Bandeira.

Só que, à noite, o vigia do Departamento – o senhor José do Nascimento da Silva, popularmente conhecido como João Cambão, trabalhador incansável, apesar dos seus 65 anos – resolveu fumar. Até aí nenhum problema, exceto a atitude politicamente incorreta de João, o vício do cigarro (vamos dar um desconto para ele: o coitado levara uma vida difícil na roça, era órfão de mãe e o pai o tratara a vida toda como um animal).

Pois foi que, para fazer o seu cigarrinho de pacaia, João Cambão precisava de papel. Abriu a primeira gaveta que encontrou, aquela dita cuja gaveta, retirou de lá a escritura do senhor Hamilton Bandeira e fez com ela um gostoso cigarro.

Depois de mais alguns cigarros e aquela conversa de calçada típica do interior do país, João Cambão foi dormir. Dormia no próprio Departamento, é claro. Assim, puxou o colchão velho e esburacado que guardava por trás do armário do Departamento, colocou-o sobre a mesa e ajeitou-se para o sono. Cumpria assídua e pontualmente sua jornada de trabalho: só despertava às 6 da manhã, quando se levantava e ia para casa.

No dia seguinte, o secretário municipal procurou a escritura para providenciar a emissão do imposto do senhor Hamilton Bandeira, mas não a encontrou (pudera: tinha sido fumada por João Cambão...). O senhor Homero não entendia, pois o sempre eficiente Hidelfonso de Alencar, seu subordinado, lhe dissera que a escritura estava na gaveta... Para completar, nada de Hidelfonso chegar.

Quem chegou foi o senhor Hamilton. O secretário municipal pediu que esperasse um pouco, enquanto aguardava a chegada de Hidelfonso para lhe repassar a escritura.

Enquanto Hidelfonso não chegava, Hamilton e Homero iniciaram um importante diálogo sobre a modernização do serviço público, aspecto visivelmente presente naquele departamento, nas caixas novas e ainda lacradas, contendo um computador de última geração e uma impressora. Possuía scanner também? – perguntou o senhor Hamilton.

- Com certeza, respondeu o secretário municipal (embora não soubesse o que é um scanner, mas por se tratar de uma palavra estrangeira, devia ser um objeto imprescindível).

Para o senhor Homero, a conversa servia para distrair, passar o tempo, enquanto esperava uma saída para o impasse de não saber onde estava o documento do senhor Hamilton Bandeira. Mas eis que chega o eficiente funcionário público Hidelfonso de Alencar (atrasado? isso não era normal).

- Pronto, o funcionário chegou.

O secretário municipal sentiu-se aliviado, Hidelfonso com certeza saberia do paradeiro da escritura do senhor Hamilton.

- Eu e o senhor Hamilton estávamos esperando por você, Hidelfonso.

- O senhor não providenciou o documento dele ainda não? – perguntou Hidelfonso ao seu superior.

- Não, estava esperando você para me dizer onde está a escritura.

- A escritura do homem aqui?

- Sim.

- Tá na gaveta.

- Não, não está Hidelfonso. Por acaso, você não teria guardado-a em outro lugar?

- Não, eu guardei nessa gaveta aí que o senhor abriu, sim, nessa aí.

- Não está.

E, Hidelfonso, com a espontaneidade que lhe era natural:

- Então, se não tá aí é porque João Cambão fumou!

E, o secretário, que ainda tentava manter no Departamento a falsa aparência de modernidade, fingindo desconhecer os hábitos de João Cambão:

- Não, Hidelfonso, você deve estar enganado. João Cambão não faria isso!

- Ele faz!

E, puxando o colchão velho, atrás do armário:

- Olha o colchão dele aqui; é aqui que ele dorme.

Depois disso, diante do silêncio estupefato do senhor Hamilton Bandeira, não se falou mais na modernidade do Departamento. Na verdade, não se falou em mais nada.

quarta-feira, março 30, 2011

Quem somos nós?

Certa vez trabalhava como recenseador e tinha que visitar uma área perto da zona rural. Dirigia-me a pé para o local. Na minha frente uma imagem sutilmente poética: um velhinho negro montado num jumento, protegido do sol por um guarda-chuva aberto com o rosto da cantora Madona. “Ela” sorria para mim, indiferente ao caminhar pacífico do jumento sob um sol de 40 graus.

O velhinho parou numa bodega no meio do caminho, eu continuei. Cheguei no local e comecei meu trabalho. Perto do meio-dia, parei diante de uma casinha de taipa, meia-porta aberta, para aplicar meu último questionário. Bati palmas. Lá de dentro um cachorro respondeu-me com alguns latidos fracos. Um menino abriu por completo a porta e repreendeu o cachorro:
- Quieto, Spike!
Apresentei-me e perguntei por uma pessoa adulta. Quem saiu foi justamente o velhinho-de-guarda-chuva-Madona. Educadamente, pediu-me que entrasse. A sala, pequenina, possuía uma mesinha contendo imagens de santos. Entre outros, São Sebastião e diversas Nossas Senhoras. Na parede, uma foto de Van Damme.
Iniciei o questionário. O velhinho respondia-me cheio de tédio e monossílabos. No meio da pesquisa, a pergunta “fatal” sobre cor ou raça: negro era uma das opções. O velhinho, como eu disse, era negro. Esperei sua resposta, que veio depois de alguns segundos de reflexão:
- Branca... Meu pai tinha o cabelo liso e minha avó os ói azul... Eu tenho escurecido por causa do sol... Por isso eu só ando agora de sombrinha.
... Antes de ir embora, aproximei-me da mesa dos santos. Onde estava Nossa Senhora Aparecida? Não estava. Seria coincidência? Não ousei perguntar pela santa, diante do olhar amedrontador do ator belga Jean Claude Van Damme...

Publicado originalmente em: http://www.axess.im/gilceniomidias