segunda-feira, julho 24, 2006

Tragédia e farsa: a seleção do merchandising

Gilcênio Vieira Souza

O filósofo Karl Marx (1818-1883) disse certa vez que a história costuma se repetir; a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. A terceira como tragédia e farsa, acrescento eu.
Baseado nesse raciocínio, a primeira vez que a França eliminou o Brasil duma copa (em 1986, nos pênaltis), pode ser considerada uma verdadeira tragédia. A segunda, o melancólico final da copa de 98 (3 a zero para a França), foi uma farsa – e, de fato, até hoje a misteriosa doença de Ronaldinho nunca foi explicada direito.A história se repetiu na copa desse ano: França 1, Brasil zero; como tragédia e como farsa.

A tragédia é evidente. Apesar de ser a 13ª economia do mundo, o Brasil é o 8º país com a pior distribuição de renda, perdendo para toda América Latina, com exceção da Guatemala, toda a Ásia e boa parta da África. 24% da população economicamente ativa vive em estado de pobreza, recebendo até meio salário mínimo por mês. Além disso, tem a corrupção (mensalões, sanguessugas, etc), a violência, a insegurança pública e outras desgraças causadas pelo capitalismo. Assim, a maioria dos brasileiros faz da fé na seleção brasileira de futebol razão para continuar acreditando na vida.
Com a eliminação da seleção, mais do que tristeza, o sentimento que tomou conta dos brasileiros, foi a raiva. Raiva contra a apatia do time, por não espelhar em campo o espírito de sacrifício do povo brasileiro (que fique claro: sacrifício imposto pelos capitalistas e por seu eficiente Estado, não por espírito de renúncia cristão).

A derrota do Brasil representou a desmistificação do futebol brasileiro, para a qual contribuiu bastante o péssimo desempenho dos nossos jogadores na copa e, em particular, naquele jogo contra o time de Zidane. A farsa está latente no forte merchandising em torno do técnico e dos jogadores brasileiros, que transformaram a copa num grande balcão de negócios. Parreira, por exemplo, lançou, junto com a copa, o livro “Formando equipes vencedoras”, segundo ele, “lições de liderança e motivação, do esporte aos negócios”. Propaganda enganosa: seus “ensinamentos” não levaram à formação de uma equipe vencedora na copa.
Bastante motivados fora de campo no gerenciamento da própria imagem e do lucro de suas “marcas” durante a copa (muito importante: aproveitar o momento), Parreira e vários jogadores, como os dois Ronaldos, Kaká, Adriano e Roberto Carlos pareciam desmotivados dentro de campo, como se estivessem “com a vida ganha”. Motivação e atitude que não faltaram para Robinho, Cicinho e Fred, jogadores que, apesar do reconhecimento, estão construindo suas carreiras.

Que isso não sirva de consolo para a eliminação do Brasil, mas o futebol está cada vez menos “romântico”. Os talentos individuais existem e ainda podem ser admirados, mas de conjunto o que predomina é o título pelo título. Assim, pode ser uma ironia do destino, o título mundial ter ficado com a Itália, país onde o futebol está metido num mar de lama e corrupção. Pode, no entanto, não ser mais que a conseqüência natural de um esporte cuja organização baseia-se mais e mais na lógica capitalista e sua “pressa” por lucros e resultados.