domingo, novembro 18, 2007

A metamorfose

Gilcênio Vieira Souza


Certa manhã, ao acordar de um sono intranqüilo, Gregório Samsung viu-se deitado no chão. Sua cama havia desaparecido. Não apenas a cama, também o lençol, o que explicava o frio que sentira durante a madrugada.

Não era sonho. O sol entrava pela fresta da janela, e com tal força, que Gregório deduziu que já era tarde, e que estava atrasado para o trabalho. O despertador não tocara, e por uma simples razão: o despertador também havia desaparecido.

Gregório procurou suas lentes de contato, que ficavam sobre o criado mudo. Gregório era ligeiramente míope. Mas a principal razão de usar as lentes era é que elas deixavam azuis os seus olhos originalmente castanhos. Mas: nem lentes, nem criado mudo.

Preciso urgentemente mandar um e-mail para o meu chefe, pensou Gregório. Mas logo desistiu da idéia, pois o computador também sumira. Não foi difícil para Gregório descobrir que o seu quarto estava completamente vazio, o que aumentou sua sensação de pânico.

Procurou ficar tranqüilo: sairia do quarto e imediatamente tomaria as necessárias providências em relação ao trabalho. Mas, ao tentar pôr em prática essa idéia, Gregório constatou que estava completamente nu. No exato instante em que fez essa nova descoberta, bateram na porta do quarto. Gregório! Você está atrasado para o trabalho! Era sua mãe.

Gregório não respondeu: ainda não sabia o que dizer. A nudez o deixara inicialmente sem ação. Olhou para o próprio corpo como se olhasse para um corpo estranho. Procurou algumas marcas de sua história particular de vida: a tatuagem no ombro esquerdo com o nome da namorada – não estava lá!

Gregório Samsung começava a se apavorar com a possibilidade de estar se transformando num outro ser. E a última descoberta veio atiçar ainda mais essa impressão: o piercing na língua também tinha sumido.

Voltaram a bater na porta. Era a irmã de Gregório. Gregório, o que está acontecendo? Abra a porta, por favor, preciso falar com você. A voz amável da irmã o convenceu a abrir a porta, mas não por completo, apenas o suficiente para colocar a cabeça por entre a abertura e conversar com a irmã.

A irmã de Gregório nada falou. Olhou para ele com se olhasse para um estranho.

  • Gregório, onde estão seus olhos azuis?

Gregório tentou balbuciar algumas palavras, mas nada saiu.

  • Cadê o seu piercing?

Gregório, sem palavras.

  • Onde está meu irmão?

A irmã de Gregório saiu chorando, o que deixou Gregório apreensivo, pois sabia que isso chamaria a atenção do pai, que logo viria bater à porta. O que de fato aconteceu:

  • Gregório, abra imediatamente essa porta!

Gregório relutava em abrir, pois conhecia a personalidade enérgica e intolerante do pai.

  • Gregório!

Ao tentar conversar com o pai da mesma maneira como conversara com a irmã – colocando apenas a cabeça pela abertura da porta – Gregório teve uma surpresa: o pai empurrou a porta, com força suficiente para fazê-la se abrir por completo e derrubar Gregório no meio do quarto vazio.

  • Que diabos está acontecendo aqui?

Gregório encolheu-se em posição fetal. O pai avançou como se fosse bater no filho. Mas, ao se aproximar, mirou Gregório como se o filho fosse outra pessoa. E, ao olhar ao redor, o vazio, saiu rápido do quarto e bateu a porta.

Gregório estava confuso. Pensou em chamar a irmã; entre eles havia muita afinidade. Porém, tal iniciativa não pôde se realizar: fortes batidas, fora do quarto, chamaram a atenção de Gregório. O barulho era bem próximo, o que levou Gregório a deduzir que pregavam alguma coisa na porta do quarto. O que Gregório apenas soube quando tentou abrir a porta, é que não pregavam coisa alguma na porta, pregavam a própria porta. Gregório agora estava preso no quarto.

Gregório encostou-se à parede e começou a pensar na nova situação. Sem tecnologia, encarcerado no próprio quarto, hostilizado pela família, tratado como um estranho. O que faria?

Foi aí que Gregório se lembrou da janela do quarto, que dava para a rua, e que a família havia esquecido de pregar, como fizera com a porta.

Sem fazer barulho, Gregório a abriu. Lá fora, a rua estava do mesmo jeito. Cuidadosamente pulou a janela e chegou à rua. Estava nu; precisava correr.

E Gregório correu.

Cheio de novos planos... Enquanto corria, esbanjava pensamentos inocentes, como: viver no campo e obter da mãe natureza tudo de que precisasse!

Gregório corria e não se dava conta de sua nova fisionomia: seu crânio apresentava-se menor; seu rosto estava coberto de pelos.

Gregório havia se transformando num neardental.