quinta-feira, fevereiro 12, 2009

O rapaz que lia romances

Era um rapaz que lia romances. Lia-os a tarde inteira. Lia-os com prazer – seus olhos ausentes de nós estão a nos dizer isto.
Nunca foi tão difícil ler romances. Este rapaz sabe disto. Seus colegas de escola não o entendem quando o veem segurando uma obra de 686 páginas como este Dom Quixote de La Mancha que tenho ao meu lado neste exato instante. Não precisa ser obra tão volumosa. Outro dia estava ele a ler A Cidade e as Serras, são apenas 139 páginas, mas eis os seus colegas a perguntarem porque o rapaz lia aquilo. Seria para o vestibular? Fosse este o caso, existem resumos aos montes, bem como versões condensadas de milhares de livros, disseram os colegas.
Ah, como a vida tornou-se burocrática... Este rapaz quer apenas ler seus romances, sem subordinar isto a finalidades utilitárias ou produtivas. Ele não lê para dissecar o romance em análises ou para prestar concursos. Lê porque gosta.
Seus pais também não o entendem. Sua mãe reclama-se, pois o rapaz passa horas e horas lendo, quando podia estar procurando emprego. O pai também o censura por ler tanto: podia ficar doido ou com problemas de vista.
Também lia quando pegava o ônibus. E naquele dia isto chamou a atenção da moça sentada ao seu lado. Ela perguntou ao rapaz que livro ele estava lendo.
- Martin Eden.
- Ah...
- Conhece?
- Não.
Silêncio. Ele:
- Gostas de ler?
- Gosto.
- Que tipo de livro?
- Autoajuda.
- Ah...
Era uma bonita moça, mas não lia da mesma maneira que lia o rapaz. Mas, otimista, como era, o rapaz sabia que existiam leitores como ele, que adoravam romances, que os liam na alegre expectativa de revelações incomuns, ou na completa ausência de expectativas, movidos tão-somente pelo prazer do ato de ler em si.
Mas, acabamos de saber que há agora uma leitora que está ocupando parte do tempo e da atenção do nosso leitor: passam horas e horas conversando sobre romances e autores. O leitor também a conheceu no ônibus. Os pais de ambos preocupam-se, pois leitor e leitora dialogam em tal sintonia que as pessoas próximas parecem fantasmas amistosos. E lá se vão a pronunciar nomes de pessoas as quais os pais não conhecem: falam de Carlos Bovary, Riobaldo, Blimunda, Sete-Sóis e tantos e tantos... Os pais não se recordam de nomes como aqueles: não são familiares, nem parentes, nem vizinhos ou meros conhecidos, nem personagens de novelas ou seriados da TV.
O rapaz acredita ter encontrado a mulher de sua vida. Sua mãe quer saber porque o jovem leitor de romances acredita tão piamente nisto. E ele não sabe como explicar à mãe.
Não sabemos se conversarão sobre romances por muito tempo ainda, se formarão um casal, se viverão felizes: é difícil fazer previsões tão pessoais num mundo neurótico, perturbado e injusto como este.
Resta-nos, então, compartilhar com o leitor o segredo que ele não compartilhou com a mãe – e que esta com certeza não entenderia: a convicção de que a leitora é a moça dos seus sonhos: basta olhar o quão absorvida estava na leitura de Se um Viajante numa Noite de Inverno e como, com os braços fechados sobre o livro, carrega-o junto ao peito, ao descer do ônibus... Foi amor à primeira vista, coisa que, como bem sabemos, não existe só nos romances românticos do século XIX. Acontece o tempo todo – e na dura vida real – e esta crônica, que não foi inventada, é a prova do que estamos falando.

Publicado também em Prazer em Aprender:
http://prazeremaprender.blogspot.com