sexta-feira, janeiro 22, 2010

(Sem título)

Quando criança, ela tinha traços indígenas. Hoje, a pele negra se destaca.
O primeiro estrangeiro que a encontrou, brincando entre palmeiras, considerou-a amável, pacífica, digna. Mas essa doce impressão se desfez quando outro homem, também estrangeiro, invadiu a sua casa, chutou os seus brinquedinhos de ossinhos de pequenos animais e sabugos, e abusou da pobrezinha sem o menor escrúpulo.
Mas não parou aí. Outros homens continuaram a violentá-la com sordidez e escárnio. E, cedo cedo, ainda menina, viu-se prostituída, enquanto ia vivendo entre esmolas e violências. Já não tinha mais o olhar lívido de uma criança imaculada e o corpo exibia cicatrizes, marcas de violações e gravidezes não escolhidas.
Cresceu entre a sarjeta, a piedade pública e a exploração privada do seu corpo e sua alma, até transformar-se nessa presença fantasmagórica.
Hoje saiu à rua e recebeu a atenção (mas por razões diversas) que só recebia quando era uma jovem apta ao trabalho braçal: saiu à rua e começou a vomitar; e o que parecia um vômito comum, logo se revelou bem diferente, pois regurgitava não restos de comida, mas os próprios órgãos e outros constituintes internos do corpo: rins, dentes, costelas...
Por isso que os vizinhos e até moradores de mais longe lhe emprestam tamanha atenção, pois jamais tinham visto tragédia pessoal tão estranha e tão intensa, a de um pobre ser a vomitar-se destrutivamente, deixando à mostra pedaços seus que antes lhe eram tão vitais, vísceras e partes que compõem a constituição de toda e qualquer pessoa, expostas nas ruas, regurgitadas ao faro faminto dos cães.
Está vindo o socorro, mas há danos irreversíveis e a alma está arrasada.

Pobre Haiti.