segunda-feira, março 16, 2009

Eudóxia

Éramos crianças naquela época, nada sabíamos da miséria, dos preconceitos, de como a vida é ainda mais difícil para alguns seres humanos.
Talvez por isso nos escondíamos dela quando ela chegava lá em casa.
Era uma senhora negra que recolhia lavagem na vizinhança. Andava descalça e malvestida.
Quando chegava lá em casa, depois de recolher a lavagem costumava parar para conversar com mamãe, segurando o fétido balde com restos de comida. Educadamente, mamãe ouvia-a como se dispusesse de todo o tempo do mundo para isso. Nós ficávamos observando escondidos e contando os minutos para que ela fosse logo embora, pois o fedor da lavagem espalhava-se pela casa toda.
O mais surpreendente era que Dona Eudóxia - era esse seu nome - não perdia o bom humor: entrava e saía cantando lá de casa. Como ela parecia anestesiada diante da comida podre que carregava, como se fosse tão natural o malcheiro...
Pobre dona Eudóxia... Mas, como já disse, éramos crianças, e muito sinceras em nossos medos e em nossos ascos. Não, não estávamos ainda contaminados pelos preconceitos que adoecem a humanidade. E, no caso da minha família, esse mal não haveria de nos atingir. E, apesar de evitarmos cruzar com Dona Eudóxia, ela sabia que em nosso lar tinha a liberdade de contar as suas histórias sem represálias, sem se sentir menos gente por ter como tarefa de toda manhã carregar um balde de lavagem pelas ruas do nosso bairro...