sábado, dezembro 05, 2009

haicai

que a poesia não saia
de férias nunca nunca
nem se após ente

outro haicai para o twitter

a poesia voltou
bashô um caboclo
e me ins-pirô

domingo, julho 26, 2009

Súplica nordestina

Moisés esperou o dia de São José, mas a chuva não veio. Vou perder o arroz, pensou. Rezara tanto e ia ser mais um ano de seca?
Passou o 19 de março, sem chuva, mas a fé de Moisés não diminuiu. Ele, Maria das Graças, a mulher, e o filho Josias rezavam todo dia. Às vezes os três se juntavam a mais um bocado de gente dali, outro bocado dacolá e a reza virava um coro que de longe se ouvia.
Aí chegou abril e foi água! Veio maio – e mais água ainda! Moisés perdeu a casa e os trecos e só não perdeu a mulher e os filhos, porque estes se mudaram pra casa de uma comadre na parte alta da cidade um dia antes da maior de todas as chuvas, que arrasou com a vida no povoado.
Com a notícia de que as águas tinham levado seu Praxedes, seu sogro, um velhinho cego e tisquim, Moisés se perguntou: “São José, o senhor tá com raiva de nós por quê? Meu Deus, me diga onde foi que esse povo sofredor errou. Quer dizer que sai da seca e cai no dilúvio?”
Moisés falava sozinho e com Deus, mas Josias estava perto, atento, ouvira tudo e também tirou suas conclusões:
- Deus é mau! – disse o pequeno Josias, que embora só tivesse seis aninhos, já tinha o olhar longíquo e melancólico.
Moisés preocupou-se, pois não queria deixar Deus ainda mais irritado, por isso, disse pra Deus:
- Ligue pra ele não, Deus. Esse bichim não sabe o que diz!
E, olhando para o filho, balançou a cabeça. Moisés era desses tantos pobres sofredores que acham que Deus escreve certo por linhas tortas.

terça-feira, julho 14, 2009

mais um haicai

tão certa quanto a
conjectura de goldbach
você me encanta


mais haicais no meu twitter: www.twitter.com/gilceniohaicai

domingo, junho 21, 2009

Meus haicais no twitter. Vá lá!

O twitter é ótimo para postar pílulas poéticas. Por isso, criei um twitter para postar haicais: http://twitter.com/gilceniohaicai. Abaixo, o primeiro haicai, postado ontem:

meu pobre haicai
cai como límpida gota
(a chuva já foi)

segunda-feira, março 16, 2009

Eudóxia

Éramos crianças naquela época, nada sabíamos da miséria, dos preconceitos, de como a vida é ainda mais difícil para alguns seres humanos.
Talvez por isso nos escondíamos dela quando ela chegava lá em casa.
Era uma senhora negra que recolhia lavagem na vizinhança. Andava descalça e malvestida.
Quando chegava lá em casa, depois de recolher a lavagem costumava parar para conversar com mamãe, segurando o fétido balde com restos de comida. Educadamente, mamãe ouvia-a como se dispusesse de todo o tempo do mundo para isso. Nós ficávamos observando escondidos e contando os minutos para que ela fosse logo embora, pois o fedor da lavagem espalhava-se pela casa toda.
O mais surpreendente era que Dona Eudóxia - era esse seu nome - não perdia o bom humor: entrava e saía cantando lá de casa. Como ela parecia anestesiada diante da comida podre que carregava, como se fosse tão natural o malcheiro...
Pobre dona Eudóxia... Mas, como já disse, éramos crianças, e muito sinceras em nossos medos e em nossos ascos. Não, não estávamos ainda contaminados pelos preconceitos que adoecem a humanidade. E, no caso da minha família, esse mal não haveria de nos atingir. E, apesar de evitarmos cruzar com Dona Eudóxia, ela sabia que em nosso lar tinha a liberdade de contar as suas histórias sem represálias, sem se sentir menos gente por ter como tarefa de toda manhã carregar um balde de lavagem pelas ruas do nosso bairro...

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

O rapaz que lia romances

Era um rapaz que lia romances. Lia-os a tarde inteira. Lia-os com prazer – seus olhos ausentes de nós estão a nos dizer isto.
Nunca foi tão difícil ler romances. Este rapaz sabe disto. Seus colegas de escola não o entendem quando o veem segurando uma obra de 686 páginas como este Dom Quixote de La Mancha que tenho ao meu lado neste exato instante. Não precisa ser obra tão volumosa. Outro dia estava ele a ler A Cidade e as Serras, são apenas 139 páginas, mas eis os seus colegas a perguntarem porque o rapaz lia aquilo. Seria para o vestibular? Fosse este o caso, existem resumos aos montes, bem como versões condensadas de milhares de livros, disseram os colegas.
Ah, como a vida tornou-se burocrática... Este rapaz quer apenas ler seus romances, sem subordinar isto a finalidades utilitárias ou produtivas. Ele não lê para dissecar o romance em análises ou para prestar concursos. Lê porque gosta.
Seus pais também não o entendem. Sua mãe reclama-se, pois o rapaz passa horas e horas lendo, quando podia estar procurando emprego. O pai também o censura por ler tanto: podia ficar doido ou com problemas de vista.
Também lia quando pegava o ônibus. E naquele dia isto chamou a atenção da moça sentada ao seu lado. Ela perguntou ao rapaz que livro ele estava lendo.
- Martin Eden.
- Ah...
- Conhece?
- Não.
Silêncio. Ele:
- Gostas de ler?
- Gosto.
- Que tipo de livro?
- Autoajuda.
- Ah...
Era uma bonita moça, mas não lia da mesma maneira que lia o rapaz. Mas, otimista, como era, o rapaz sabia que existiam leitores como ele, que adoravam romances, que os liam na alegre expectativa de revelações incomuns, ou na completa ausência de expectativas, movidos tão-somente pelo prazer do ato de ler em si.
Mas, acabamos de saber que há agora uma leitora que está ocupando parte do tempo e da atenção do nosso leitor: passam horas e horas conversando sobre romances e autores. O leitor também a conheceu no ônibus. Os pais de ambos preocupam-se, pois leitor e leitora dialogam em tal sintonia que as pessoas próximas parecem fantasmas amistosos. E lá se vão a pronunciar nomes de pessoas as quais os pais não conhecem: falam de Carlos Bovary, Riobaldo, Blimunda, Sete-Sóis e tantos e tantos... Os pais não se recordam de nomes como aqueles: não são familiares, nem parentes, nem vizinhos ou meros conhecidos, nem personagens de novelas ou seriados da TV.
O rapaz acredita ter encontrado a mulher de sua vida. Sua mãe quer saber porque o jovem leitor de romances acredita tão piamente nisto. E ele não sabe como explicar à mãe.
Não sabemos se conversarão sobre romances por muito tempo ainda, se formarão um casal, se viverão felizes: é difícil fazer previsões tão pessoais num mundo neurótico, perturbado e injusto como este.
Resta-nos, então, compartilhar com o leitor o segredo que ele não compartilhou com a mãe – e que esta com certeza não entenderia: a convicção de que a leitora é a moça dos seus sonhos: basta olhar o quão absorvida estava na leitura de Se um Viajante numa Noite de Inverno e como, com os braços fechados sobre o livro, carrega-o junto ao peito, ao descer do ônibus... Foi amor à primeira vista, coisa que, como bem sabemos, não existe só nos romances românticos do século XIX. Acontece o tempo todo – e na dura vida real – e esta crônica, que não foi inventada, é a prova do que estamos falando.

Publicado também em Prazer em Aprender:
http://prazeremaprender.blogspot.com