quarta-feira, agosto 15, 2012

Soneto imperfeito para o dia dos pais


Meu pai (que já partiu) era um grande matemático,
Um grande matemático sem diploma.
Comunicativo, provava que quem tem boca vai a Roma.
Era bem humorado e emotivo, sem ser romântico.

Sem que saiba disso, ensinou-me a brincar com meus filhos,
Ensinou-me a voltar a ser criança, quando adulto,
E mesmo imperfeito e ingênuo, mas querendo ser absoluto,
Não me conduziu pela mão, mostrou-me os trilhos.

Por amor, a gente também vira pai um dia,
Mesmo sem conhecimento de causa ou faculdade.
Por isso uma coisa tu deves ensinar aos teus pequenos:

A se opor à opressão desde a mais tenra idade,
A combater os opressores e seus venenos,
Que possam ser dignos, sem nunca perder a alegria.


Pio XII, Maranhão, 12/08/2012, 23 horas e 14 minutos.

sábado, maio 26, 2012

O anti-facebook está condenado a vagar sem sossego sob o teto daquela velha esquina


O programa Globo News Literatura de ontem, 25/05, fez um grande desfavor para a humanidade – e principalmente para aqueles que amam a literatura: o registro em vídeo do escritor Dalton Trevisan. Os autores da façanha foram o escritor Claufe Rodrigues, que apresenta o programa, e o repórter cinematográfico William Torgano. Claufe fez questão de nos lembrar que se trata do primeiro registro em vídeo de Trevisan.
Mas o desfavor do programa da Globo não parou aí. A reportagem mostrou ainda a casa em que mora Trevisan. Sem avisar que estava filmando, do portão o autor da matéria chamou o dono da casa. Quando se aproximou e viu a câmara, Dalton voltou imediatamente. Apesar de Trevisan não ser nenhuma dessas efêmeras celebridades promovidas pela imprensa burguesa para nos distrair com bobagens e nos fazer esquecer nossos reais problemas, dá para imaginar o dia seguinte: fotógrafos e câmeras de plantão naquela esquina de Curitiba a fim de novos registros do mais novo ganhador do Prêmio Camões.
O mote para a matéria do Globo News Literatura foi exatamente esse: o Prêmio Camões, concedido a escritores em língua portuguesa, teve Dalton Trevisan como vencedor. O anúncio da 24ª edição do prêmio foi na segunda, 21.
O escritor curitibano é um dos mestres do conto. Suas narrativas curtas, diretas ao ponto, revelam as neuroses, o falso moralismo, os instintos mais torpes de personagens que se esgueiram na noite curitibana e no dia-a-dia da cidade. Apesar do sucesso de sua obra, Trevisan sempre foi avesso a badalações e raramente se deixou fotografar, comportamento que levou a imprensa a batizá-lo com o título de um dos seus livros: “o vampiro de Curitiba”.
O desfavor da Globo consiste em tentar desvendar o mistério – quem é Dalton Trevisan -, quando esse mistério é um dos pontos mais fortes da relação entre os leitores e a obra de Dalton. Tenta desfazer um dos poucos mitos vivos da literatura. E, claro, vivemos numa época em que ninguém pode ficar sem rosto e nada pode permanecer oculto (o mito é o nada que é tudo, já disse Fernando Pessoa).
Mas há também uma falta de respeito com o cidadão Dalton Trevisan, cujo direito à privacidade (não dá entrevistas, nem gosta de ser fotografado) é conhecido de longe pela imprensa. Ou será que em tempos de facebook e reality shows já não se permite mais o direito das pessoas ao anonimato?
Claufe Rodrigues fez parte dos grupos Os Camaleões e Ver o Verso, que nas décadas de 80 e 90 promoviam recitais de poesia, primeiro no Rio de Janeiro, depois por todo o país. Que bela iniciativa. Mas agora ele está na Globo. Não é coincidência que um dos amigos de Claufe e, junto com ele, um dos realizadores daqueles recitais, seja o jornalista Pedro Bial, o “cronista” do Big Brother, o principal reality show brasileiro (ninguém pode ficar sem rosto, nada pode permanecer oculto).
Quanto ao anti-facebook Dalton Trevisan, está agora condenado a vagar sem sossego sob o teto daquela velha esquina de Curitiba, às vésperas do seu 87º aniversário (14 de junho).

domingo, maio 13, 2012

Onde está o amor?


Disseram-me ontem que o Amor morreu.
Uns afirmam que seu corpo teria sido encontrado em meio aos destroços provocados pela queda de um míssil.
- Erramos o alvo - tentou justificar fria e laconicamente um diplomata.
Outros dizem que, na verdade, o Amor foi encontrado morto por um catador de lixo, que avisou às autoridades. De olhos abertos, solícitos de piedade, o corpo encolhido. Dormira na rua; morreu de frio.
Alguns divergem dessas versões. Ele teria morrido sem sofrer tanto, dizem. Após jogar dominó com os companheiros de asilo, recolheu-se contente ao quarto. De manhã, na hora do café, sentiram sua falta. Continuava na cama. Na boca, um sorriso. Num dos olhos, estranhamente, uma lágrima parada.
- Morreu em paz - foi o comentário.
A família não compareceu ao enterro. Por falta de tempo, talvez.

Discute-se, porém, a possibilidade d'Ele não ter morrido.
Não estaria passando bem, é verdade. Mas resistiria bravamente às maquiavélicas tentativas de exterminá-lo da face da Terra.
Desconfia-se que algumas pessoas estariam tratando de seus ferimentos num abrigo antimíssil. E que, apesar de quase não saírem à luz do dia, e o alimento ali ser escasso, o Amor rejuvenescera suas esperanças. O Amor teria afirmado, serenamente, que a guerra só lhe dava mais forças para continuar vivo, resistindo sorrateiramente nos corações humanos.
Há também a suspeita de que inúmeras pessoas compartilham com Ele do calor da noite. E Ele inflama seus corações de generosidade e de um corajoso otimismo.
Acredita-se que há um bom número de lares que não O expulsaram do seu convívio. Nessas famílias, o Amor continua encarando sem alarde as emoções que lhe tocam: rindo, chorando, olhando, gozando, entristecendo... Nocauteando com um humor fino e peculiar as forças adversas: ódio, inveja, rancor...

Não. O Amor não morreu.
Vive dias difíceis, sem dúvida. Mas pulsa. Pulsa teimosamente.
E as ondas do seu pulsar atingem ouvidos e corações sensíveis.
Organiza-se subversivamente em catacumbas, como os primeiros cristãos. Questiona o poder e seus representantes, cujo ódio ao povo transparece em todos os atos. Esse povo que só pede algumas migalhas de amor, nada mais.
O amor está vivo sim. Pode estar pensativo, pouco à vontade, preocupado, inquieto em seu imo. Filosofa: como unir de novo o ser humano à sua mãe Terra; como organizar um governo onde o Ministério do Amor seja o mais importante dos ministérios; como espalhar aos quatro ventos a ideia, esquecida, espezinhada, de que a fraternidade é que é o óbvio, não a guerra.
Silencias um pouco. Ouves. Ousando levantar a voz contra a anti-música das guerras e chacinas, bocas sussurram planos para a eternidade e se beijam.
Ouves. Um balbuciar de criança e o mistério do seu sorriso.
Ouves. São planos comuns que braços sofridos fraternalmente tentarão erguer. Estão com fome. Mas sonham.
Tudo isso só prova uma coisa: o Amor não morreu.

Pio XII, Maranhão,  17/05/1999.

quarta-feira, abril 18, 2012

Maria

- O senhor tem certeza que era ela?
- Era ela, tenho certeza.
- O senhor já conhecia ela?
- Eu já tinha visto ela pela BR...
- O senhor só tinha visto ou já transou com ela?
- Transar, assim, não foi bem uma transa não...
O motorista insistia que era Maria, possibilidade que o delegado se recusava aceitar.
Maria nasceu há 17 anos, num lugar chamado Pindura Saia, município de Pio XII, cujo nome é uma homenagem ao papa que, pelo que hoje sabemos, calou-se diante da perseguição aos judeus e protegeu nazistas, ao fim da 2a guerra mundial; não estranhemos essa homenagem: a maioria dos homenageados com nomes de cidades, ruas, obras, são pessoas pouco escrupulosas. O pai, Maria jamais conhecera. Um homem, a quem o vulgo batizou simplesmente de Zé Grande, engravidou a mãe de Maria e abandonou-a três meses depois para, segundo o dito cujo, ganhar muito dinheiro no garimpo. Não se sabe até hoje quanto ele ganhou, se é que ganhou, ou se perdeu o principal, a vida, que, por motivos óbvios, ainda é o bem mais importante que possuímos (para alguns, o único bem).
Mesmo esperançosa de um dia abrir a porta e encontrar à frente o sorriso dourado de Zé Grande, a mãe de Maria – que também se chamava Maria – juntou-se a um outro homem rude, cortador de juquira, pau pra toda obra, como se costuma dizer, de nome Manoel, mas só conhecido e reconhecido de todos pelo apelido de Pé de Cabra. Com ele, teve mais três filhos, dois meninos e uma menina.
Maria ajudava a mãe a cuidar dos meio-irmãos, a plantar, quebrar coco, fazer carvão e o que mais fosse preciso. Quando Maria tinha seus doze anos, o dito Pé de Cabra, seu padrasto, quando sozinho com ela passou constantemente a cercá-la de falsos carinhos e palavreado ainda mais hipócrita e, por último, a ameaçá-la de morte, caso a menina revelasse para a mãe o assédio que sofria.
Transtornos tais Maria viveu até os 16 anos, quando, ao ser violentada pelo padrasto, chamou a atenção da mãe e outras pessoas mais com gritos e lágrimas. Apesar do flagrante, a mãe acreditou ou fingiu acreditar na inocência de Pé de Cabra, que insinuou que a menina vivia seduzindo-o há algum tempo, com o feitiço do sexo que desabrochava.
A mãe assistiu, sem atitude, o padrasto expulsar Maria de casa, semi-nua e sem nem mesmo um chinelo no pé.
O resultado é que a menina virou prostituta de beira de estrada. E, enganada por alguns clientes que, ao final da transa jogavam para ela uma nota de 1 real (e olha que ela cobrava a mísera quantia de 5 reais), e também por ter aceito aquele valor em dias em que o estômago falava mais alto, Maria se transformou em motivo de chacota entre as colegas de difícil vida fácil, que passaram a chamá-la de rapariga de 1 real.
Poucos meses depois de cair nesse destino sombrio, Maria engravidou. E, no 7º mês de gravidez, foi levada às pressas para o hospital, sofrendo hemorragia.
O médico de plantão não estava e uma das enfermeiras que a atenderam mandou que parasse de gritar, pois, segundo a insensível criatura, “na hora de fazer, não pensou nisso”.
É triste ser lacônico ao descrever as circunstâncias em que vida e morte passam a ter um limite efêmero, mas, em resumo, Maria morreu.
Daí o delegado não acreditar na história contada pelo caminhoneiro, dizendo ser Maria a moça que aparecera na cabine do seu caminhão, perguntando:
- Cadê o meu dinheiro?
O homem declarou ter caído da cabine, com o susto, pois a porta do motorista estava aberta, e desmaiou, não sabendo exatamente por quanto tempo ficara desacordado. Ao acordar, descobriu que todo o seu dinheiro tinha sido levado.
Esse foi o primeiro caso. Contudo, outros relatos já apareceram, conforme as declarações de motoristas vários que percorrem a BR 316 no trecho entre as cidades de Pio XII e Santa Inês.

Todos insistem que a mulher que os atemoriza, chegando repentinamente como que do nada, e leva o dinheiro que trazem consigo,

é Maria...
Pio XII, Maranhão, 07/05/2007.