quinta-feira, dezembro 15, 2005

O filho de Lampião

Gilcênio Vieira Souza

A institucionalização da repressão contra trabalhadores, conforme anunciou a Anistia Internacional no relatório sobre a polícia brasileira, me faz lembrar que quando nasci, em 1969, estava em curso no Brasil a terrível ditadura instalada com o golpe militar de 1964. Suas marcas ideológicas se faziam presentes na vida cotidiana de diversas formas. Uma delas condicionou-me durante muito tempo: quando me pegava cantando o hino da bandeira ("salve lindo pendão da esperança") como um indelével traço cuneiforme em meu cérebro. Afinal, durante o primário (estamos em Juazeiro do Norte, Ceará), só podíamos entrar na sala de aula, terminado o recreio, depois de cantar, em fila, o hino da bandeira.
O silêncio rondava as relações familiares, desautorizando referências explícitas ao clima de repressão do período, o que me fez viver uma "infância feliz", sem me angustiar com os problemas do mundo (coisa que, hoje, a aguçada percepção dos meus filhos não permite: há pouco me pediram para comprar uma camiseta estampando o clamor mundial "fora Bush").
Mesmo assim, aos 14 anos, eu já participava da campanha das "Diretas Já" e me preocupava com a Lei de Segurança Nacional. Mas não havia medo ou paranóias de perseguição, apesar das coincidências que de vez em quando me faziam cruzar com um maluco que era membro da organização ultradireitista Tradição, Família e Propriedade.
Antes disso, porém, eu era mais menino, mais ingênuo, e o medo chegara a mim de outra fonte e outra forma, através de uma descoberta que me deixou inicialmente apreensivo e, por conseguinte, reflexivo: a de que o vigia da Biblioteca Pública de Juazeiro do Norte era filho de Lampião. Mamãe que certo dia me contou:
- O vigia da biblioteca?
- Sim, João Peitudo, é filho de Lampião.
Passei alguns dias pensando naquilo e olhando-o de um modo diferente. Como podia aquele homem pacato ser filho do maior cangaceiro brasileiro? O seu nome, que até então eu desconhecia - João Peitudo - e o simbolismo da situação me faziam pensar como instintos violentos podiam se esconder naquele homem aparentemente dócil.
Eu, que frequentava bastante a biblioteca, acabei me acostumando com João Peitudo e chegando à conclusão que aquele apelido era uma injustiça.
Mais tarde, já sem a dócil visão de menino, eu aprenderia como a miséria produz "fanáticos", como Antonio Conselheiro, e "facínoras", como Lampião. Aprenderia também sobre a farsa de que há um corpo de homens armados, prontos para defender a pátria e a ordem social. Enquanto esse grupo armado, a serviço do Estado, continuar impondo a humilhação, a tortura e a morte aos que têm a vida como o único bem, os filhos de Lampião se multiplicarão sobre a terra; não terão, com certeza, a índole pacífica do ex-vigia da Biblioteca Pública de Juazeiro do Norte...

[Saí de Juazeiro em 1992 e não tive mais notícias de João Peitudo. Antes de escrever este texto, fiz uma pesquisa no google e descobri que João Peitudo conseguiu comprovar, em 1994, através de um exame de DNA feito nos Estados Unidos, que era de fato filho de Lampião e Maria Bonita; e que morreu em 200o, aos 62 anos...]

sábado, dezembro 03, 2005

Morte seguida de resistência

Gilcênio Vieira Souza

A Anistia Internacional divulgou ontem um relatório que mostra o que já se sabia sobre a polícia brasileira: sua extrema violência contra os pobres.
A brutalidade da polícia brasileira é expressão contínua do sadismo do colonizador, do senhor de engenho, do coronel. Sadismo cuja gênese mescla a psicologia e a cultura do poder em terras brasileiras com a necessidade de reprimir os que se opõem à dominação política e econômica. E para cumprir com essa que é sua primordial função, o Estado burguês está bem servido no Brasil de ditaduras exemplares. Desumanizar o oprimido, reduzi-lo a uma coisa abjeta, aniquilar suas aspirações e, se for o caso, a maior e ao mesmo tempo a mais simples de todas - a aspiração de continuar vivo - são tarefas ensinadas nos quartéis, como provam os vídeos divulgados recentemente, mostrando a tortura e a humilhação com que muitos policiais submetem os recrutas, para que se "preparem" para projetar tamanha selvageria nos que ousam questionar a "ordem".
O documento da AI destaca a responsanbilidade dos governos brasileiros - leia-se Estado - na institucionalização da violência policial, principalmente contra as comunidades carentes, revelando que a maioria das vítimas da polícia são jovens pobres, negros ou pardos, e boa parte sem antecedentes criminais.
Essa constatação está presente há muito tempo nas letras de rap e nas denúncias de organizações que dão voz aos moradores da periferia. Percebe-se, felizmente, que cada vez mais surgem grupos de contestação ao mito da "cordialidade" brasileira, como os movimentos de favelados, desempregados, rappers, grafiteiros, etc.
Um dado fundamental apresentado pela Anistia Internacional desvenda uma das artimanhas utilizadas pela polícia para esconder sua estratégia deliberadamente genocida: entre 1999 e 2004, as polícias do Rio de Janeiro e de São Paulo mataram 9.899 pessoas em situações oficialmente registradas como "resistência seguida de morte".
Para cada trabalhador assassinado pela polícia - leia-se Estado - pelo crime de não ter nascido em berço de ouro e/ou não manter relações promíscuas com o poder ("pistolões" da burocracia estatal no judiciário, no executivo, etc.) , deve-se organizar nova resistência: expressão coletiva da solidariedade entre os oprimidos para barrar a opressão secular que faz do Brasil uma das nações com as maiores taxas de mais-valia do planeta, uma das polícias mais repressivas e um dos judiciários mais lentos e parciais. Caso contrário, se repetirão chacinas como a do Carandiru, em 1992, na favela do Vigário Geral, em 1993, nas escadarias da Calendária, também em 1993, em Eldorado dos Carajás, 1997, na Baixada Fluminense, 2005, ou as pequenas e muitas vezes anônimas resistências seguidas de morte com que se mascara o trabalho premeditado de extermínio efetuado pela polícia brasileira.