quarta-feira, março 30, 2011

Quem somos nós?

Certa vez trabalhava como recenseador e tinha que visitar uma área perto da zona rural. Dirigia-me a pé para o local. Na minha frente uma imagem sutilmente poética: um velhinho negro montado num jumento, protegido do sol por um guarda-chuva aberto com o rosto da cantora Madona. “Ela” sorria para mim, indiferente ao caminhar pacífico do jumento sob um sol de 40 graus.

O velhinho parou numa bodega no meio do caminho, eu continuei. Cheguei no local e comecei meu trabalho. Perto do meio-dia, parei diante de uma casinha de taipa, meia-porta aberta, para aplicar meu último questionário. Bati palmas. Lá de dentro um cachorro respondeu-me com alguns latidos fracos. Um menino abriu por completo a porta e repreendeu o cachorro:
- Quieto, Spike!
Apresentei-me e perguntei por uma pessoa adulta. Quem saiu foi justamente o velhinho-de-guarda-chuva-Madona. Educadamente, pediu-me que entrasse. A sala, pequenina, possuía uma mesinha contendo imagens de santos. Entre outros, São Sebastião e diversas Nossas Senhoras. Na parede, uma foto de Van Damme.
Iniciei o questionário. O velhinho respondia-me cheio de tédio e monossílabos. No meio da pesquisa, a pergunta “fatal” sobre cor ou raça: negro era uma das opções. O velhinho, como eu disse, era negro. Esperei sua resposta, que veio depois de alguns segundos de reflexão:
- Branca... Meu pai tinha o cabelo liso e minha avó os ói azul... Eu tenho escurecido por causa do sol... Por isso eu só ando agora de sombrinha.
... Antes de ir embora, aproximei-me da mesa dos santos. Onde estava Nossa Senhora Aparecida? Não estava. Seria coincidência? Não ousei perguntar pela santa, diante do olhar amedrontador do ator belga Jean Claude Van Damme...

Publicado originalmente em: http://www.axess.im/gilceniomidias

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